A floresta me vestiu primeiro
Entre tacacá, Via Láctea e tardes douradas: como o Acre moldou meu olhar antes mesmo de eu saber o que era moda.
A convite da The Bee Create (@thebeecreate), mergulhei nas minhas memórias mais preciosas pra escrever essa edição.
Não sobre moda no sentido técnico da coisa, mas sobre o que moldou meu olhar muito antes de eu saber o que era styling.
Essa é uma história sobre o Acre. Sobre estética com cheiro de tacacá e sol das 16h.
Me inspiraram a escrever sobre o Acre…
E essa já deve ser a quinta vez que tento escrever essa abertura.
Não porque falar do Acre seja difícil pra mim, muito pelo contrário.
É porque eu sei que tudo que eu colocar aqui provavelmente não vai dar conta de mostrar nem um terço do que eu realmente sinto por esse lugar onde cresci.
Crescer no Acre sempre foi incrivelmente normal pra Claudinha que adorava catar minhoca no quintal da vó, escondida. O mesmo quintal onde tinha pé de açaí, bacaba, graviola, acerola… e mais um bocado que eu nem lembro agora, mas que se plantava e colhia sem cerimônia.



Sempre foi normal pedir pros meus pais me levarem pra tomar um caldo que deixava a boca dormente e tinha uma gosma branca no meio. Talvez porque minha mãe tomava esse caldo todo dia quando estava grávida de mim. Sim, eu tô falando de tacacá.


Também foi normal meus pais me mandarem pra uma excursão no meio da floresta aos 14 anos, e eu ter tido uma das experiências mais transformadoras da minha vida.
Definitivamente, encontrar uma onça do outro lado do rio, uma cobra, um bando de macacos, aranhas do tamanho da mão… não foi tão normal assim. Mas no fim daquele dia, tive o privilégio de colher seringa direto da árvore, com as próprias mãos. Seringa que vira borracha. Borracha que, no fim, vira nossas Havaianas.



E foi naquela mesma viagem, depois de um dia inteiro no mato, pela primeira vez na vida, eu vi um pedaço da Via Láctea com nitidez. Um céu claro e roxo, imenso e completamente vivo. Foi ali que eu entendi que só a floresta te dá esse tipo de espetáculo: um silêncio tão absoluto que até o céu se revela inteiro pra você.
Foi só depois que eu saí do Acre que eu entendi: nada disso era exatamente normal.
Que a maioria das pessoas — inclusive no Brasil — nunca viveu nada nem perto disso.
E que aquilo que eu achava corriqueiro, muita gente provavelmente morreria de medo hoje.


Depois eu entendi o tamanho do privilégio que é ter crescido na floresta amazônica.
Com a boca dormente de jambu, o pé sujo de terra vermelha e o olho acostumado com um céu que, em noites boas, deixava ver a Via Láctea inteira, uma coisa que quem nasceu no meio da cidade grande nem sabe que existe.
Essas são experiências que não se compram.
Que não se encontram no Pinterest.
E que, de alguma forma, moldaram minha estética até hoje.


Porque quando a DeBee Create me pediu pra escrever sobre moda e Acre, eu entendi: moda, pra mim, é isso.
É a mistura entre tudo o que vivi: a floresta, o quintal da vó, o tacacá fumegando, com uma visão de beleza que não vem de fora, mas que brota lá mesmo.
Moda no meu Acre é boho que não imita Coachella, é boho com cheiro de terra depois da chuva e textura de tecido leve que balança com o vento.



É um boho soft, com cara de final de tarde e pé na varanda e conversa com vó. Um boho com brilho de gota de orvalho, não de glitter industrial.
E a alta costura fala baixinho.
É feita com o tempo de quem sabe respeitar o processo: do bordado minucioso às camadas de tecido que dançam com o corpo. E do privilégio de conhecer quem produz.



É transformar as cores da floresta: o verde úmido, o branco do algodão cru, o off-white da seringa direto do pé, o dourado queimado do sol das 16h, em paleta de coleção.
O boho de lá carrega pérolas que parecem ter vindo do fundo do rio, mas são achadas em feiras do interior.
Traz laços improvisados, florzinhas bordadas, saias com movimento e blusas que abraçam o corpo como se fossem abraço de vó.
Tudo feito com um certo charme bagunçado.



E a alta costura?
Ela não vem de Paris, mas poderia ir pra lá.
É artesanal, mas com acabamento de editorial.
Porque no Acre, a moda se sustenta em três pilares que não foram pensados em ateliê, foram vividos no corpo.
1. A matéria é ancestral
O tecido carrega história.
Não é só sobre o que se veste, mas do que é feito.
2. A forma é escultural
As silhuetas não são moldadas em papel: são moldadas na lembrança.
3. A beleza é cerimonial
Essa moda não é só pra vestir. É pra fazer história. E passar por gerações.
É acreano demais da minha parte saber que tive o privilégio de todas essas vivências me moldando — e moldando também meu olhar, meu gosto, meu senso de estética.
Porque não dá pra separar quem eu sou do lugar de onde eu vim.
A floresta não só me cercou: ela me ensinou a ver o mundo com outros olhos.
E talvez seja por isso que, mesmo quando falo de moda, eu esteja, na verdade, falando de memória.
Com carinho,
Ludoboss (em quase todas as edições).
Mas hoje… é só Claudinha, com olhos cheios de floresta e saudades de casa.
ainda sem ar com essa leitura tão rica em memórias, afeto e moda diretamente da nossa floresta, me sinto totalmente representada com essa leitura. obrigada obrigada obrigada claudinha! rebeca e eu estávamos ansiosas pra ter esse texto no ar!!!!